terça-feira, 11 de agosto de 2009

MITOLOGIA E CRISTIANISMO - ENTRE DEUSES E HEROIS

Desde suas origens na Antiguidade, a mitologia fascina o ser humano e confunde-se com a religiosidade, inclusive a fé cristã

José Donizetti Morbidelli
Jornalista

Os deuses do Olimpo devem estar em polvorosa. Em pleno século 21, na Era da Tecnologia, cada vez mais pessoas se interessam pela mitologia. Divindades, heróis e aventuras épicas que foram se acumulando ao longo da história da humanidade constituem um riquíssimo acervo de mitos, que, com base real ou não, povoam o imaginário das civilizações. E, tal como os imaginários habitantes do Monte Sagrado da Antiga Grécia, que envolviam-se com os mortais a ponto de gerarem filhos com eles, os mitos do passado vez por outra ressurgem com força, estimulando a arte, a crença e a imaginação de muita gente ao longo dos tempos. O segredo do mito é justamente este – com o passar dos anos, sua origem se perde no passado, a ponto de ninguém mais saber se referem-se a fatos reais ou não. Mas pouco importa: o valor do mito não está necessariamente na sua veracidade, mas na importância para o imaginário coletivo.
Num dos capítulos de O Livro de Ouro da Mitologia (Ediouro), escrito no século 18, o norte-americano Thomas Bulfinch apresenta três teorias defendidas por filósofos para explicar a origem da mitologia: a teoria alegórica, ou seja, simbólica e não condizente com a verdade propriamente dita; a teoria histórica, que, ao contrário da anterior, defende a hipótese dos mitos terem, de fato, existido em determinadas épocas; e a teoria bíblica, que pressupõe que as lendas mitológicas tenham se originado nas narrativas das Escrituras – embora a mesma tese também admita que as histórias tenham sido distorcidas no decorrer dos séculos. Independentemente de que teoria se aproxime mais da verdade, o que não se pode negar é que até hoje deuses e heróis da Antiguidade greco-romana ainda despertam enorme interesse, seja entre estudantes, pesquisadores e até teólogos – prova disso é que o livro de Bulfinch tem sido adotado por escolas e universidades em todo o mundo.
Se cada interessado por mitologia tem um motivo peculiar para se deixar levar por essas histórias fantásticas, o propósito que os move parece ser bastante similar, ou seja, tentar explicar o mundo contemporâneo alicerçando-se em supostos acontecimentos ou meras narrativas ocorridas num tempo não identificado, e que a literatura tratou de eternizar como lendas, ou melhor, como mitos. Etimologicamente, a palavra grega teogonia quer dizer origem dos deuses. Na literatura, Teogonia, de Hesíodo – o mais antigo entre os poetas gregos –, assim como Ilíada, de Homero, são as obras mais estudadas pelos especialistas no anseio de explicar a origem dos deuses e heróis da mitologia grega, isso desde o século 9 a.C. Passados quase três milênios, os estudos iniciados lá no passado ainda suscitam muitas dúvidas, e talvez o exemplo mais latente dessa incerteza seja se a mitologia pode, de fato, ser considerada uma religião. Para Jorge Pinheiro, pós-doutor em teologia e pastor da Igreja Batista de Perdizes, zona oeste de São Paulo, a resposta é não, embora as duas vertentes muitas vezes caminhem lado a lado: “Dos mitos restaram somente os rituais religiosos, os mistérios das seitas e a enorme influência de toda uma história da qual permanecem apenas os rastros”.


Conteúdo moral – Mestre em Ciências das Religiões, a advogada Maria de Fátima Moreira de Carvalho, que congrega na Igreja Assembleia de Deus de João Pessoa (PB), compactua com a afirmação do teólogo: “Mesmo que se refiram a deuses, mitologia não pode ser considerada religião; refere-se apenas a narrativas arcaicas que nos transmitem algum ensino moral”, afirma. Pode-se atribuir o início dessa desmitificação de deuses e ídolos gregos ao apóstolo Paulo, com seu célebre discurso realizado em Atenas, relatado no livro de Atos. Na capital dos filósofos do Mundo Antigo, ele mostrou-se perplexo com o ambiente de idolatria reinante naquela sociedade, a ponto de as pessoas adorarem a deuses desconhecidos. Foi justamente essa a deixa que ele aproveitou para falar-lhes de Jesus: “Esse, pois, que vós honrais sem o conhecer, é o que vos anuncio” (Atos 17.23).
Segundo o apóstolo, a religiosidade dos atenienses era imperfeita, embora aproveitável. Apesar dos atenienses continuarem militando nos caminhos da filosofia pagã, o discurso teve lá seus resultados positivos, com várias pessoas se convertendo – entre eles, Dionísio, membro da aristocracia local e integrante do prestigiado Areópago de Atenas. No entender de Jorge Pinheiro, mitologia e cristianismo seguem por caminhos bastantes díspares: “A cultura grega apresentou uma leitura mítica do destino, que traduzia a maneira de pensar e viver o helenismo – período da história grega compreendido entre os anos 323 e 30 a.C. Já a fé cristã embute a ideia de que o mundo é uma criação divina, a vitória da crença na perfeição do ser em todos seus aspectos sobre o medo trágico e a matéria que resiste ao divino”, aponta.
Mitos ou não, simbolismos e similaridades envolvendo mitologia e cristianismo é o que não falta. Um dos mais antigos enigmas da história da humanidade, a lenda do cálice sagrado – ou Santo Graal –, que algumas doutrinas apontam ter sido usado por Jesus na sua última ceia e no qual, supostamente, José de Arimatéia teria recolhido o sangue de Cristo, é um exemplo do que muitos classificam como mitologia cristã. Uma segunda versão da lenda defende que Maria Madalena teria sido a detentora do cálice – afinal, segundo a Bíblia, ela era a única mulher além de Maria presente no Calvário durante a crucificação. A lenda transcendeu os séculos subsequentes e, na Idade Média, a busca ao cálice sagrado se tornou uma obsessão para os cavaleiros medievais. Até o cinema rendeu-se à história, em produções como Indiana Jones e a Última Cruzada, terceiro filme da célebre série de aventura do herói Harrison Indiana Jones Ford, de Steven Spielberg, e O Código Da Vinci, adaptação do best seller de Dan Brown.
“O cálice sagrado é um exemplo típico de mitologia cristã, mas não é bíblico; deriva das doutrinas cátaras”, explica Maria de Fátima. “O Graal foi uma reinterpretação de um mito celta que se referia a um prato de poderes divinos que revestia a comida posta sobre ele.” Um dos principais pilares que sustentava a religião dos cátaros – povos que ocupavam o norte da península itálica no século 12 e que se opunham ao cristianismo – era a crença de que Jesus não era filho de Deus, mas um importante profeta.


Cavaleiros da cruz – Por sua vez, a Ordem dos Cavaleiros Templários, uma espécie de organização fundada no mesmo século 12, em Jerusalém, por cavaleiros franceses para proteger os reinos cristãos da invasão dos mouros, realmente existiu. Contudo, eles foram bastante mitificados ao longo do tempo. A ação perpetrada pelos templários marca o início das grandes expedições de caráter religioso e militar – historicamente chamadas de Cruzadas – para impedir o domínio das terras bíblicas pelos muçulmanos. No início do século 14, Felipe IV, então rei da França, ordenou a destruição da organização, fazendo com que os cavaleiros remanescentes se refugiassem em Portugal. Extinta, a Ordem dos Cavaleiros Templários cedeu lugar à Ordem de Cristo, tendo como seu principal fundador o papa João XXII. A experiência marítima adquirida pelos templários nas muitas peregrinações à Terra Santa colaborou para que os portugueses, a partir do século 15, aventurassem-se por mares nunca antes navegados, no processo de expansão que os levou ao Oriente e à América, culminando com a descoberta do Brasil.
Na tentativa de explicar as origens da mitologia por um viés bíblico, como exposto no livro de Bulfinch, os gregos foram muito além dos limites determinados entre a razão e a imaginação, e apontam vários personagens citados nas duas correntes – mítica e religiosa – como bases de sustentação para suas argumentações. Para eles, Deucalião nada mais é do que um segundo nome de Noé, o homem que, segundo o livro bíblico do Gênesis, salvou a humanidade e a vida animal do Dilúvio. A justificativa para a comparação é, aparentemente, simples: depois que Zeus – considerado o pai de todos os deuses na mitologia grega – resolveu acabar com a maldade da face da terra com uma enchente de proporções globais, Deucalião e sua mulher, Pirra, foram aconselhados a construir um barco que lhes garantisse a sobrevivência. E as coincidências se estendem a outros heróis: Hércules, por exemplo, seria identificado com Sansão; Árion, com o profeta Jonas. Já o dragão guardião da macieira dos pomos de ouro, cultivada no jardim das três deusas Hespérides, seria ninguém menos que a serpente maligna que enganou Eva.
Diante de tantas confrontações, há até quem ouse comparar Zeus com Deus, o criador do universo na concepção cristã. Afinal, dentro de cada uma das concepções, eles representam o Poder supremo. Não é o caso de Jorge Pinheiro, que contrapõe citando as torturas sofridas pelos judeus no livro apócrifo de Macabeus na década de 170 a.C., que preferiam a morte a fazer sacrifícios ao deus grego. “O que tem o Deus Eterno, criador dos céus e da terra, com o Zeus olímpico? Nada”, resume o pastor.


Mitos e temores – Se geograficamente a Grécia e a Itália são separadas apenas por algumas milhas do Mar Mediterrâneo, as relações históricas entre as duas nações é ainda mais estreita e vem desde a Antiguidade. Desde o século oitavo antes da Era Cristã, a cultura grega, e principalmente sua mitologia, exerce influência direta sobre a arte romana, com vários heróis reproduzidos com as mesmas características estéticas. De diferente, mesmo, apenas a nomenclatura, traduzidas do grego para o latim. A influência grega exercida sobre a arte romana chegou ao Renascimento – período compreendido entre os séculos 13 e 17, que marca a transição da Idade Média para a Idade Moderna. Até mesmo para representar a religião cristã os italianos foram buscar inspiração no classicismo grego, cuja primazia era representar seus personagens históricos e mitológicos completamente nus – daí a expressão tão comum nos dias de hoje, o nu artístico.
Rafael Sanzio, um dos principias artistas da época, e que traz a suavidade como principal característica em suas obras – como A Ressurreição de Cristo, pertencente ao acervo do Museu de Arte de São Paulo, o Masp –, e Michelangelo, o gênio que no século 16 cobriu de afrescos o teto da capela Sistina, no Vaticano, também recorreram a aspectos mitológicos em suas obras. O mestre florentino ainda legou à posteridade maravilhosas esculturas, como a representação “quase viva” do herói bíblico Davi e o colossal Moisés, que hoje encantam turistas na Itália. De tão perfeita, conta-se que, ao finalizar a obra, o próprio artista, em momento de êxtase, teria batido com o martelo no joelho da escultura e gritado: “Perché non parli?”.
Fundada nos anos 1940, a Coletividade Helênica de São Paulo é uma entidade filantrópica que trabalha no sentido de preservar e divulgar as tradições e a cultura helênica por meio de atividades sociais e assistenciais. Ex-presidente da associação, Stayros Kyriopoulos, cristão ortodoxo, afirma que são muitos os aspectos e manifestações do mundo contemporâneo que ainda remetem à cultura grega, principalmente à mitologia. “Na minha opinião, o teatro, por exemplo, é uma das atividades que mais contribuem para a preservação cultural dos mitos gregos”, diz. Já para a doutora Maria de Fátima, o maior legado deixado pela mitologia para a humanidade foi um impulso causado no pensamento filosófico. “Foi justamente para contestar a existência dos deuses mitológicos que os filófosos pré-socráticos se manifestaram, dando início aos movimentos filosóficos no Ocidente”, atesta a doutora. “Do ponto de vista cultural, a mitologia nos mostra o quanto o pensamento grego, antes do cristianismo, era cercado de temores”, completa.
Contudo, para os mais aficionados por mitologia e que procuram na arcaica cultura grega uma explicação lógica para compreender melhor alguns aspectos do mundo contemporâneo, o pastor Jorge Pinheiro deixa um alerta, ou melhor, um pensamento para reflexão: “O ser humano atravessou o mito em direção à razão e ao pensamento científico; portanto, não há porque voltar a ele”, conclui o teólogo.

Fonte: Revista Eclésia - Edição 134

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